Os
cabelos acastanhados desciam pelas costas estreitas até a cintura. Eram a
expressão de vaidade da menina Zuleide Aparecida do Nascimento, de quatro anos.
E uma das poucas coisas — além de uma boneca de plástico — que Zuleide supunha
lhe pertencer quando foi presa por agentes da ditadura militar, em 1970.
Talvez
por isso a lembrança do corte de cabelo forçado que sofreu no Juizado de
Menores seja uma das mais marcantes memórias de Zuleide.
—
Aquilo foi uma violência muito forte para mim — afirma ela, aos 49 anos,
emocionada.
Zuleide
e os irmãos de 2, 6 e 9 anos foram “capturados” no Vale do Ribeira, onde sua
família se engajara na luta armada contra o regime. Ali, Carlos Lamarca
comandava quadros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Quando o grupo foi
preso, as crianças também o foram.
Acabaram fotografadas (Zuleide, na imagem acima, já com o cabelo cortado), fichadas e tachadas como “miniterroristas” no
temido Dops (Departamento de Ordem Política e Social). E foram banidas do
Brasil.
Ao
lado de 40 presos políticos, embarcaram em um avião em direção à Argélia, e
depois à Cuba, em uma negociação da esquerda com o governo militar que envolveu
o sequestro do então embaixador alemão Ehrenfried von Holleben. O retorno de
Zuleide ao Brasil só seria possível 16 anos mais tarde.
—
Sou uma pessoa sem identidade. Fui alfabetizada em espanhol. Meus documentos
foram cassados, nem sei que dia nasci. Me sinto mais cubana do que brasileira —
diz.
A
história de Zuleide e de outras 39 pessoas que hoje têm entre 40 e 60 anos e
foram crianças durante o regime militar estão contadas no livro “Infância
roubada”, recém-lançado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens
Paiva”.
O
material é uma tentativa de rememorar, a partir dos relatos das vítimas, como o
Estado militar tratou os filhos de seus inimigos. São narrativas inéditas de um
dos trechos menos conhecidos da história nacional.
Em
pouco mais de 300 páginas, ilustradas com fotografias e documentos históricos,
há depoimentos e contextualizações dos casos.
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